25 de setembro de 2023 •
As principais competências do Tribunal de Futebol da Fifa
Pedro Mendonça, especial para a Máquina do Esporte
São diversos os tipos de litígio que ensejam a atuação do Tribunal de Futebol da Fifa, mas, de modo geral, constata-se que a competência do órgão se vincula diretamente ao caráter internacional de uma disputa
O leitor que acompanha mais de perto o futebol certamente já leu notícias dando conta de que algum clube foi “condenado pela Fifa” a pagar valores a outro clube, a um jogador ou mesmo a um treinador. É comum, inclusive, que a mesma notícia reporte o risco do clube devedor sofrer sanção de transfer ban (tipo de sanção esportiva que já abordei aqui) em caso de não pagamento em um prazo determinado.
Essas notícias usualmente refletem decisões emitidas pelo Tribunal de Futebol da Fifa (“Fifa Football Tribunal”, no original em inglês). Trata-se de um órgão que funciona no seio da entidade máxima do futebol mundial, e cujas principais competências pretendo apresentar ao longo do texto desta coluna. Em outras palavras, ao fim da leitura, espero que o leitor possa identificar os tipos de litígios que mais comumente demandam a atuação do Tribunal de Futebol e que, afinal, ocupam algum espaço no noticiário esportivo.
As principais competências do Tribunal de Futebol decorrem basicamente de dois regulamentos. O Regulamento sobre Status e Transferência de Jogadores (o Fifa RSTP, do inglês “Regulations on the Status and Transfer of Players”) traz competências das mais diversas, concernentes a relações estabelecidas entre clubes, atletas, treinadores e até mesmo federações nacionais (estas últimas na condição específica de empregadoras de treinadores de seleções nacionais). Por sua vez, o novíssimo Regulamento de Agentes Fifa atribui ao Tribunal de Futebol uma competência específica: julgar litígios decorrentes de (ou conectados a) contratos de representação de dimensão internacional entre um agente e seu cliente.
A identificação da competência do Tribunal de Futebol em casos relacionados a agentes, portanto, depende essencialmente da compreensão acerca do conceito de “dimensão internacional” exposto no artigo 2, parágrafo 2, do Regulamento de Agentes Fifa: considera-se que um contrato de representação tem dimensão internacional quando ele rege serviços de agente de futebol relacionados a pelo menos uma transação conectada a uma transferência internacional. Assim, de modo simplificado, pode-se dizer que o agente terá a possibilidade de pleitear seus direitos perante o Tribunal de Futebol, se a demanda tiver como base um contrato de representação por meio do qual tenham sido prestados serviços de agenciamento relacionados a pelo menos uma transferência internacional.
É importante ter em conta, contudo, que o conceito de “dimensão internacional” adotado pelo Regulamento de Agentes Fifa é diferente daquele já há muito consagrado pelo Fifa RSTP para identificar relações entre clubes, atletas, treinadores e federações nacionais sujeitas à jurisdição do Tribunal de Futebol.
O artigo 22, parágrafo 1, do Fifa RSTP estabelece duas hipóteses de competência do Tribunal de Futebol associadas à existência de uma dimensão internacional em relações de trabalho no âmbito do futebol. O item “b” diz respeito às relações de trabalho entre jogador e clube; o item “c” faz referência às relações de trabalho entre treinador e clube (ou federação nacional, no caso de um treinador de seleção). No contexto do Fifa RSTP, a dimensão internacional está presente quando as partes do contrato são de nacionalidades distintas. É o caso, por exemplo, de um clube brasileiro que contrata um atleta argentino ou um treinador português.
Portanto, é fundamental compreender a diferença nos conceitos de “dimensão internacional” entre um e outro regulamentos. Enquanto para fins de aplicação do Fifa RSTP a nacionalidade das partes é o aspecto central a ser considerado, no caso dos agentes essa informação é irrelevante; o que estará em causa é se os serviços prestados pelo agente ao seu cliente têm conexão com uma transferência internacional.
Por outro lado, a nacionalidade das partes também é decisiva em casos de litígios entre clubes. Nos termos do item “g” do já citado artigo 22, parágrafo 1, do Fifa RSTP, o Tribunal de Futebol é competente para processar disputas entre clubes vinculados a associações distintas. O termo “associações”, nesse contexto, diz respeito às federações nacionais filiadas à Fifa. Consequentemente, um clube brasileiro (indiretamente vinculado à Confederação Brasileira de Futebol (CBF) por meio de sua filiação à federação estadual de futebol correspondente) pode ajuizar uma demanda perante o Tribunal de Futebol para cobrar valores devidos por um clube de qualquer outro país decorrentes, por exemplo, de um contrato de transferência.
Outro objeto recorrente de disputas perante o Tribunal de Futebol são cobranças do mecanismo de solidariedade (decorrente do Fifa RSTP, não com fulcro na Lei Geral do Esporte) e do “training compensation”. Essas competências encontram-se previstas nos itens “d” e “e” do artigo 22, parágrafo 1, do Fifa RSTP, porém também foram impactadas pelas recentes mudanças nos regulamentos da Fifa. Com a criação da Fifa Clearing House (uma espécie de câmara de compensação que, a partir deste ano, passou a processar e distribuir os valores devidos aos clubes formadores), a tendência é que se tornem mais raras as demandas dessa natureza. Em contrapartida, o item “f” do mesmo dispositivo do Fifa RSTP atribui ao Tribunal de Futebol competência para julgar disputas de maior complexidade sobre processos de revisão do passaporte eletrônico de jogadores (documento eletrônico que consolida o histórico de registros federativos de um jogador ao longo de sua carreira, com base no qual a Fifa Clearing House identifica os clubes formadores e os montantes cabíveis a cada um).
Além das disputas acima mencionadas, também são dignas de nota aquelas relacionadas ao Certificado de Transferência Internacional (conhecido por ITC, em referência ao inglês “International Transfer Certificate”), documento por meio do qual se viabiliza o registro de um jogador por associação (isto é, federação nacional) diversa daquela em que ele se encontrava registrado até então. Em outras palavras, cuida-se de um elemento essencial a toda e qualquer transferência internacional.
Em circunstâncias específicas nas quais, por exemplo, o atleta deixa um clube à revelia deste, a associação à qual tal clube é vinculado pode rejeitar o envio do ITC solicitado pela associação do novo clube. Nessa hipótese, há uma disputa envolvendo o ITC que, para além de impactar a concretização da transferência em si, pode posteriormente culminar na apuração de compensações a serem pagas de uma parte a outra ou até mesmo na aplicação de sanções esportivas, conforme o caso.
Enfim, são diversos os tipos de litígio que ensejam a atuação do Tribunal de Futebol da Fifa. De modo geral, constata-se que a competência desse órgão se vincula diretamente ao caráter internacional da disputa. Ainda que o conceito de “dimensão internacional” varie conforme o regulamento, há sempre um elemento internacional presente na discussão levada ao Tribunal de Futebol. Diante da importância desse foro e da plena efetividade de suas decisões, é fundamental que todos os seus jurisdicionados (jogadores, treinadores, clubes, federações e, a partir de outubro, os agentes) estejam atentos a essa alternativa relevante de persecução dos seus direitos no âmbito do futebol organizado.
Pedro Mendonça é advogado especializado na área esportiva desde 2010, com vasta experiência na assessoria a diversas entidades esportivas, como comitês, confederações e clubes, além de atletas, e escreve mensalmente na Máquina do Esporte