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11 de outubro de 2023 •

A fatiada reforma do imposto de renda

Sim, uma silenciosa e fatiada reforma do imposto de renda está em andamento. Será o melhor para o País?

Fonte: Valor Investe

Por: Ana Carolina Monguilod

No seu início, o atual governo federal parecia dar sinais de que a reforma da tributação do consumo seria a mais importante para se racionalizar o sistema tributário. Foi neste espírito que empenharam grandes esforços para fazer avançar a chamada Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45/2019, já aprovada pela Câmara dos Deputados e agora aguardando a apreciação do Senado.

Resumidamente, propõe a substituição de cinco tributos atualmente cobrados (PIS, COFINS, ICMS, ISS e IPI) por outros três tributos novos (Contribuição sobre Bens e Serviços – CBS, Imposto sobre Bens e Serviços – IBS e Imposto Seletivo – IS).

A PEC 45/2019 promete simplificação, mas entregará a promessa de maneira limitada, com relevante probabilidade de rápida degeneração do sistema, quiçá levando-nos a pesadelo similar àquele que vivemos hoje.

Ariano Suassuna teria dito: “Não sou nem otimista, nem pessimista. Os otimistas são ingênuos, e os pessimistas amargos. Sou um realista esperançoso.”

Tenho me esforçado bastante para deixar de ser “amarga” e me transformar em uma feliz “realista esperançosa”. Contudo, outros acontecimentos, agora no campo do imposto de renda, não têm ajudado.

Segundo o artigo 18 da PEC 45/2019, o Poder Executivo deveria encaminhar ao Congresso Nacional, em até 180 dias após a promulgação desta Emenda Constitucional, projeto de lei para reformar a tributação da renda. O parágrafo único do mesmo artigo determina que eventual arrecadação adicional da União decorrente desta reforma do imposto de renda poderá ser considerada como fonte de compensação para redução da tributação incidente sobre a folha de pagamentos e sobre o consumo de bens e serviços.

Assim, esperava-se que a reforma da tributação da renda viesse em proposta única e harmônica após a aprovação da PEC 45/2019, para inclusive permitir que eventual aumento de arrecadação com o imposto de renda resultasse em redução da tributação do consumo.

Considerando que a tributação global brasileira já é excessiva, equivalente a aproximadamente 34% do nosso Produto Interno Bruto (PIB), comparável à média dos países ricos (dos países membros da OCDE), maior arrecadação com o imposto de renda deveria ser compensada com redução na tributação do consumo.

Esta realocação de carga tributária seria positiva na medida em que, por ser o Brasil um país de renda média baixa, nossa alta carga tributária está fortemente alocada na tributação do consumo (aproximadamente 45% da carga total). A tributação do consumo tende a ser regressiva e, portanto, mais injusta.

No entanto, quando a população do país tem renda média baixa, é enorme o desafio de reequilibrar a equação tributária para aumentar a representatividade da tributação da renda em relação à do consumo. Eventual reforma do imposto de renda deveria ser vista como uma oportunidade para tanto.

De maneira decepcionante, a necessidade de arrecadar acabou por prevalecer. O governo, para buscar equilíbrio em seu novo arcabouço fiscal, tem promovido medidas isoladas de alteração do imposto de renda para atingir arrecadação adicional, em 2024, superior a 160 bilhões de reais.

Parte relevante desta arrecadação será obtida com as seguintes medidas:

(i) alteração nos julgamentos do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), com potencial arrecadatório de R$ 97,8 bilhões (não somente no campo do imposto de renda, mas incluindo este tributo);

(ii) alteração na tributação corporativa (Imposto de Renda da Pessoa Jurídica – IRPJ, e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL) das subvenções / incentivos fiscais de ICMS, com potencial arrecadatório de R$ 35,3 bilhões;

(iii) novo marco tributário dos fundos de investimento, prometendo gerar receitas de imposto de renda de R$ 13,3 bilhões;

(iv) o fim dos Juros sobre Capital Próprio (JCP), com arrecadação de IRPJ e CSLL de R$ 10,5 bilhões; e

(v) nova tributação dos investimentos no exterior (offshore) detidos por pessoas físicas residentes, com arrecadação estimada em R$ 7 bilhões.

Estas previsões de arrecadações adicionais se referem a 2024, devendo também gerar receitas tributárias relevantes nos anos vindouros.

Sem fazer juízo de valor quanto a cada uma das medidas isoladamente consideradas (se são válidas ou não, e nem se o formato proposto é adequado), entendo não ser ideal que alterações tão relevantes sejam feitas de maneira fatiada, sem considerar a tributação da renda globalmente. Medidas isoladas e tomadas com o exclusivo propósito de gerar arrecadação tendem a não ser tão bem pensadas quanto uma reforma global.

Veja-se, por exemplo, a intenção de extinguir os Juros sobre Capital Próprio (JCP) sem se tratar concomitantemente de eventual tributação dos dividendos, hoje isentos, mas que podem se tornar tributáveis em um futuro próximo. São duas formas de se remunerar os sócios de uma sociedade, devendo ser analisadas de maneira conjunta e harmônica.

Promover o fim do JCP agora, apenas para arrecadar, sem se saber se, quando e como virá eventual tributação dos dividendos não faz qualquer sentido. Uma reforma fatiada do imposto de renda não nos permitirá melhorar o sistema tributário como um todo. Muito pelo contrário, corre o risco de deixá-lo pior.

Ademais, essa reforma fatiada do imposto de renda parece ter sido pensada fora do contexto do acima citado artigo 18 da PEC 45/2019, de modo que esses acréscimos de arrecadação não necessariamente serão compensados por reduções na tributação do consumo. Arriscaria dizer que há grande risco de essas arrecadações extraordinárias do imposto de renda serem simplesmente absorvidas como aumentos permanentes da nossa carga tributária global, já insuportável. E vamos então rumo aos 30 e tantos/quase 40% do PIB de carga tributária. Nada bom para o País.

Há quem defenda que a reforma da tributação sobre o consumo deveria ser implementada conjuntamente com a reforma da tributação da renda, buscando-se repensar o sistema tributário como um todo. Entendo os argumentos usados para se defender este posicionamento, mas também devemos admitir que uma reforma geral da tributação seria quase inviável.

Coisas demais para serem pensadas, negociadas, aprovadas e implementadas. No espectro contrário, puxadinhos tributários só deixarão o sistema mais complexo e disfuncional, agora também no campo do imposto de renda.

Sabemos quão preparados e bem-intencionados são os integrantes das áreas técnicas de formação de política fiscal, tanto do governo como da administração tributária (da Receita Federal). Esperamos que interesses políticos de curto prazo não contaminem o nobre propósito de presentear o Brasil com um sistema tributário racional.

Ana Carolina Monguilod é sócia do CSMV Advogados e Mestre (LL.M) em Direito Tributário Internacional pela Universidade de Leiden (Holanda).