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21 de outubro de 2022 •

A natureza Jurídica da ANPD e seu poder de fiscalização

Por Mauricio Nicodemos

Fonte: LexLatin

Quando da entrada em vigor da Lei n° 13.709, de 14 de agosto de 2018 (“LGPD”), muito se comentou sobre o fato de as Seções I e II, do Capítulo IX – Da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) e do Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade, que compreendem os artigos 55 a 59 da LGPD, terem sido vetadas do texto final. Ora, se havia uma legislação em vigor relativa à proteção de dados pessoais, qual a real aplicabilidade da LGPD se não havia órgãos constituídos para fiscalizar o tratamento dos dados pessoais e, eventualmente, aplicar as penalidades previstas para os casos de descumprimento?

Levando em conta a lacuna legal inicial da LGPD quanto aos órgãos de supervisão e fiscalização, em dezembro de 2018 foi editada a Medida Provisória n° 869, de 27 de dezembro de 2018 (“MP 869/2018”), posteriormente convertida na Lei n° 13.853, de 8 de julho de 2019 (“Lei 13853/2019”). Ainda, foi estabelecida a estrutura regimental da ANPD por meio do Decreto nº  10.474, de 26 de agosto de 2020 (“Decreto 10474/2020”). Por meio destes dispositivos legais, entre outras alterações implementadas na LGPD, foram criados: (i) a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (“ANPD”) e (ii) o Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade (“CNPD”). À ANPD coube a supervisão da atividade de tratamento de dados pessoais no Brasil, sendo responsável pelo estudo de normas internacionais aplicáveis, elaboração e informação ao público de políticas relacionadas à proteção de dados pessoais, comunicação com os agentes públicos e privados envolvidos e, ainda, fiscalização e punição dos infratores. Já ao CNPD coube a fixação de diretrizes gerais e estratégicas para o funcionamento da ANPD e para a realização de estudos a audiências públicas relacionadas à privacidade e proteção de dados.

Ao tempo da edição da MP 869/2018, convertida na Lei 13853/2019, muito embora os órgãos fiscalizadores da privacidade de dados no Brasil tenham sido criados, sua mera criação não significava exatamente a implementação efetiva dos mecanismos de controle e supervisão. Isto porque uma das principais características necessárias aos órgãos efetivos de controle e supervisão é a sua independência. E neste aspecto, a palavra “independência” deve ser interpretada como independência funcional e financeira (orçamento independente), sendo inclusive um dos requisitos funcionais para a criação de órgãos de supervisão de proteção de dados de acordo com legislações estrangeiras, notadamente o Regulamento Geral de Proteção de Dados europeu (“GDPR”) . No caso da ANPD, esta autoridade nacional foi criada como órgão da administração pública direta, subordinada à Presidência da República, o que vinculava toda a sua atividade de supervisão e fiscalização. Em outras palavras, e para demonstrar o conflito existente: a ANPD, como ente da administração pública federal e sem independência funcional e financeira, por vezes estaria supervisionando fiscalizando as atividades de tratamento de dados da própria administração pública? E quanto à aplicação das penalidades, qual seria a isenção da ANPD para desempenhar este papel?

Dadas as questões mencionadas acima, em mais um esforço legislativo na tentativa de resolver o problema da independência na supervisão e fiscalização das atividades de tratamento de dados no Brasil e completa implementação das regras da LGPD, foi editada a Medida Provisória n° 1.124, de 13 de junho de 2022 (“MP 1124/2022”), com a consequente edição posterior do Decreto n° 11.202, de 21 de setembro de 2022 (“Decreto 11202/2022”). De acordo com as novas regras fixadas pela MP 1124/2022 a ANPD foi, então, transformada em “autarquia de natureza especial, dotada de autonomia técnica e decisória, com patrimônio próprio” .

O fato de a ANPD ter sido transformada em uma autarquia modifica bastante suas prerrogativas de atuação. As autarquias, na qualidade de entes da administração pública indireta, possuem patrimônio e receita próprios, e gestão administrativa e financeira descentralizada , o que lhes confere bastante independência em sua atuação. Ainda, considerando que as autarquias não possuem qualquer finalidade lucrativa, tais entidades não estão sujeitas a qualquer tipo de concorrência de mercado, agindo com a independência necessária ao desempenho de suas funções primordiais, tanto perante os entes públicos como perante os entes privados.

Logo, o legislador apontou na direção certa ao determinar a autarquia como a pessoa jurídica adequada ao funcionamento da ANPD, para exercer as funções de supervisão e fiscalização da atividade de tratamento de dados no Brasil. Porém, ainda não está expresso em lei que a ANPD possui autonomia funcional, administrativa e financeira, o que ainda pode causar alguma preocupação do ponto de vista de seu funcionamento pleno e efetivo. Além disso, embora a MP 1124/2022 (que, como visto, atribui autonomia técnica e decisória e patrimônio próprio à ANPD) permaneça vigente até 24 de outubro de 2022 por força de sua prorrogação, perderá eficácia caso não seja convertida em lei.

Resta saber qual será o posicionamento do Congresso Nacional em relação à conversão da MP 1124/2022. Atualmente, a MP 1124/2022 está para votação em plenário (https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/153611) e há diversas emendas modificativas a serem votadas, o que ainda pode alterar de alguma forma a sua estrutura e funcionamento. Em vistas das indefinições, a ANPD segue sem realizar, de fato, a fiscalização para a qual foi criada.

Espera-se que a situação atual não perdure por mais tempo já que a agenda regulatória da ANPD para o biênio 2023–2024 está em fase de planejamento e dependerá de definição prévia das questões estruturais da autarquia para a sua implementação.

A Medida Provisória n° 1124/2022 foi convertida na Lei 14.460 DE 2022, promulgada em 25 de outubro e publicada no Diário Oficial da União no dia 26 de outubro. Todas as propostas de emenda foram rejeitadas.

[1] GDPR, Art. 52. Independence: 1. Each supervisory authority shall act with complete independence in performing its tasks and exercising its powers in accordance with this Regulation. 2. The member or members of each supervisory authority shall, in the performance of their tasks and exercise of their powers in accordance with this Regulation, remain free from external influence, whether direct or indirect, and shall neither seek nor take instructions from anybody. 3. Member or members of each supervisory authority shall refrain from any action incompatible with their duties and shall not, during their term of office, engage in any incompatible occupation, whether gainful or not. 4. Each Member State shall ensure that each supervisory authority is provided with the human, technical and financial resources, premises and infrastructure necessary for the effective performance of its tasks and exercise of its powers, including those to be carried out in the context of mutual assistance, cooperation and participation in the Board. 5. Each Member State shall ensure that each supervisory authority chooses and has its own staff which shall be subject to the exclusive direction of the member or members of the supervisory authority concerned. 6. Each Member State shall ensure that each supervisory authority is subject to financial control which does not affect its independence and that it has separate, public annual budgets, which may be part of the overall state or national budget.

[2] LGPD, Art. 55-A. Fica criada a Autoridade Nacional de Proteção de Dados – ANPD, autarquia de natureza especial, dotada de autonomia técnica e decisória, com patrimônio próprio e com sede e foro no Distrito Federal.

[3] Decreto-Lei n° 200/1967, Art. 5°. Para os fins desta lei, considera-se: I – Autarquia – o serviço autônomo, criado por lei, com personalidade jurídica, patrimônio e receita próprios, para executar atividades típicas da Administração Pública, que requeiram, para seu melhor funcionamento, gestão administrativa e financeira descentralizada.