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06 de setembro de 2023 •

Lei Geral do Esporte e exploração da imagem do atleta

Fonte:  Valor Econômico

Seguindo o entendimento que já era amparado pela legislação, a norma vem colocar um ponto final nessa discussão

Por Flávio de Haro Sanches e Livia Ricciotti

Publicada em 15 de junho, a Lei n° 14.597, que instituiu a Lei Geral do Esporte com a finalidade de regulamentar o desporto no país, reforça a natureza jurídica de verbas há muito questionadas pelo Fisco.

Apesar do veto ao capítulo que tratava da tributação das atividades esportivas, traz alívio aos clubes e atletas de futebol a segurança jurídica.

Com o avanço dos meios de comunicação nas últimas décadas, cresceu também o potencial de exploração da imagem por personalidades da mídia. No futebol, jogadores e comissão técnica são notados em campo pela sua imagem profissional – da qual decorre o direito de arena -, bem como pelos atributos pessoais que conectam o ídolo ao público, decorrendo daí um direito cada vez mais relevante, o direito de imagem.

Foi exatamente esse o contexto em que se deu o arranjo negocial pelo qual clubes e jogadores de futebol passaram a firmar contrato de licenciamento do direito de imagem individual do atleta, de natureza civil, concomitante ao contrato de trabalho desportivo e pelo mesmo prazo de vigência da atividade laboral. Muitas vezes, o contrato é firmado pela pessoa jurídica que gerencia a carreira do atleta, que detém a licença de uso de imagem.

A despeito dessa formatação jurídica encontrar respaldo na legislação, a Receita Federal parece não se conformar com o modelo de negociação envolvendo clubes de futebol, tendo questionado, por diversas vertentes, a legitimidade da exploração comercial da imagem, a natureza jurídica e a tributação dos pagamentos como receitas da pessoa jurídica.

Nos primeiros lançamentos fiscais sobre o tema, sustentava-se que valores percebidos a título de direito de imagem teriam natureza personalíssima e, portanto, só poderiam ser prestados (logo, pagos e tributados) pela pessoa física do atleta. No entanto, essa corrente não prosperou, apoiando-se na Constituição Federal, no Código Civil e na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que reconhece a dupla vertente do direito de imagem, com conteúdo moral e patrimonial, sendo essa parcela passível de cessão a terceiros (e.g., REsp 74473).

Num segundo momento, a argumentação fazendária passou a questionar a cessão gratuita do direito de imagem à pessoa jurídica na qual o atleta pertence ao quadro societário, na tentativa de reclassificar os valores acordados como rendimentos da pessoa física do jogador. Nesse ponto, a jurisprudência do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) ficou dividida no tempo, admitindo a contratação envolvendo a pessoa jurídica apenas para os períodos posteriores à edição do artigo 129 da Lei n° 11.196/05.

Mais recentemente, as autoridades fiscais federais vêm sustentando que a contratação do direito de imagem concomitante ao contrato de trabalho do jogador, na verdade, seria motivada somente pela economia fiscal, aplicando inclusive multa qualificada em alguns casos, por suposta simulação visando à sonegação fiscal. Além disso, insistem na comprovação da efetiva exploração da imagem fora do espetáculo esportivo, como se apenas campanhas publicitárias de marcas famosas fossem aceitáveis, dentre outras métricas arbitrariamente impostas. Ignoram, assim, que o valor da imagem dos atletas (e seu potencial de engajamento do público) reflete diretamente no incremento das receitas dos clubes, decorrentes de bilheteria, licenciamento, patrocínio e direitos de transmissão.

O racional de tais autuações fiscais parte da premissa de uma suposta dependência entre os dois contratos – laboral e civil -, como se fosse algo ilícito. Em alguma medida são mesmo dependentes, pois a imagem do atleta está diretamente relacionada com a sua participação no elenco do clube, durante o período de vigência contratado, ressalvadas exceções ocasionadas pelo afastamento do jogador.

Tudo isso possui amparo na Lei n° 9.615/98 (Lei Pelé), que dispõe expressamente sobre as duas situações, permitindo, com todas as letras, que a remuneração total do jogador seja negociada de maneira fracionada, observado o limite legal então vigente para o direito de imagem, equivalente a 40% do valor total pago ao atleta, e que a Lei Geral do Esporte aqui comentada aumentou para 50%.

As decisões mais recentes inclusive confirmam esse entendimento, como se vê no acórdão 2402-011.329, julgado em 6 de abril, salientando que o STJ consolidou o entendimento de que o direito de imagem tem conteúdo patrimonial passível de licenciamento a terceiros; que o futebol é atividade esportiva incorporada à identidade nacional, sendo impossível
não considerá-lo como atividade de natureza cultural, sendo legítima a aplicação do artigo 129 da Lei nº 11.196; bem como que não estariam presentes os elementos característicos de uma relação trabalhista.

Seguindo, portanto, o entendimento que já era amparado pela legislação e que vinha prevalecendo nas controvérsias travadas com o Fisco Federal, a Lei Geral do Esporte vem colocar um ponto final nessa discussão ao firmar a interpretação de que “os prêmios por performance ou resultado, o direito de imagem e o valor das luvas, […] não possuem natureza salarial e constarão de contrato avulso de natureza exclusivamente civil” (artigo 85, parágrafo 1°), e que o direito de uso da imagem pode ser explorado por pessoa jurídica da qual o atleta seja sócio (artigo 164).