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27 de setembro de 2022 •

O primeiro ano de vigência da Lei do superendividamento

Fonte: Estadão

Em 1° de julho de 2021, entrou em vigor a Lei n° 14.181/2021 (“Lei do Superendividamento” ou “Lei”), que alterou o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto do Idoso, com o objetivo de aperfeiçoar a disciplina de concessão de crédito ao consumidor e, em especial, dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento.

Pouco mais de um ano de vigência da Lei, é possível verificar que o Poder Judiciário, além da atuação pré-judicial conciliatória e judicial nas ações por superendividamento para revisão dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes, vem construindo precedentes acerca da extensão de alguns conceitos da Lei. O Poder Executivo, no que lhe concerne, vem propiciando os meios conciliatórios por intermédio dos PROCONs e promovendo iniciativas para conceder operacionalidade e efetividade aos ditames da Lei.

Os precedentes jurisprudenciais têm sedimentado principalmente os seguintes temas: implementação do processo de repactuação de dívidas; interpretação do mínimo existencial; suspensão da exigibilidade do débito e demais sanções; e observância à informação adequada e clara sobre os ônus e os riscos da contratação do crédito.

Com relação ao procedimento na esfera judicial, tem restado garantido o disposto na Lei do Superendividamento, iniciando-se com o recebimento do pedido de repactuação de dívidas, sendo designada uma audiência global de conciliação em que o consumidor, ora autor, deve apresentar proposta de plano de pagamento das dívidas a todos os credores que se enquadrarem na Lei, estabelecendo um prazo máximo de quitação em 5 (cinco) anos.

Caso a audiência conciliatória reste infrutífera em relação a qualquer credor, seja por não comparecimento do credor ou não aceitação da proposta de plano de pagamento, prossegue-se com ação por superendividamento para repactuação das dívidas restantes mediante “plano judicial compulsório” de pagamento, com a citação de todos os credores não englobados no acordo.

É importante salientar a existência de processos em que o procedimento acima mencionado não é seguido. Em que pese serem casos mais isolados, demonstram a necessidade de uniformização de ritos e procedimentos.

No que tange ao mínimo existencial, previsto no artigo 6º, incisos XII, XIII, artigo 54-A § 1º, artigo 104-A e artigo 104-C § 1º do Código de Defesa do Consumidor, os Tribunais pátrios vinham limitando em 30% os descontos para pagamento de contratos de empréstimos bancários, aplicando por analogia a limitação para desconto em folha de pagamento de crédito consignado, prevista na Lei nº 10.820/2003. Contudo, o STJ, ao julgar o tema repetitivo 1085, em março de 2022, considerou que a limitação dos descontos, por aplicação analógica da Lei n. 10.820/2003, não se mostra instrumento idôneo a combater o superendividamento e a preservação do mínimo existencial, afastando a aplicação de tal limitação.

Não obstante, a regulamentação do mínimo existencial, deu-se por meio da edição do Decreto nº 11.150, de 26 de julho de 2022, o qual fixou o mínimo existencial em 25% do salário-mínimo, o que corresponde atualmente a R$ 303,03. Cabe destacar que referido decreto é questionado no STF pelos membros do Ministério Público e pela Defensoria Pública, por meio de duas ações de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental ajuizadas pela Conamp – Associação Nacional dos Membros do Ministério Público e pela Anadep – Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos.

Com relação à suspensão da exigibilidade do crédito, a jurisprudência tem entendido que esta não é automática quando do requerimento de instauração do processo, sendo determinada após a audiência global de conciliação, conjuntamente com a proibição da inscrição do consumidor nos cadastros de proteção ao crédito, se o caso. Por outro lado, de acordo com o rito da Lei, a ausência do credor na referida audiência importará suspensão da exigibilidade do crédito e suspensão dos encargos de mora.

Quanto à oferta de crédito, além do afastamento das práticas abusivas, a jurisprudência tem garantido o dever de informação por parte do fornecedor, concluindo que o descumprimento enseja uma série de sanções, como a redução de juros e encargos da dívida, a dilação de prazo de pagamento, sem prejuízo de outras.

No âmbito do Poder Executivo, a conciliação extrajudicial tem sido utilizada cotidianamente pelos PROCONs espalhados pelo país e tem sido utilizada também em diversos programas pilotos, desenvolvidos pelos tribunais estaduais, como já é o caso de São Paulo, Rio Grande do Sul, Paraná, Pará, Pernambuco e Ceará e Defensorias Públicas no país.

Nesse sentido, importante mencionar que vem sendo instituído por alguns Procons os Núcleos de Apoio ao Superendividado, a exemplo de São Paulo, Minas Gerais e Maranhão, em que estarão presentes não apenas os conciliadores, mas também outros especialistas, como assistentes sociais, educadores, economistas e administradores.

Ademais, cabe destacar que, em 21 de outubro de 2021, foi promovida audiência pública pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública para discussão de proposta de regulamentação do mínimo existencial e critérios para quantificação.

O Conselho Nacional de Justiça (“CNJ”), por sua vez, instituiu Grupo de trabalho destinado a monitorar a judicialização e aperfeiçoar os procedimentos administrativos para facilitação do trâmite dos processos do superendividado, além de sugerir a realização de eventos e atividades de capacitação de magistrados, elaborando provimentos, instruções e orientações aos órgãos do Poder Judiciário. Nesse sentido, foi produzida cartilha com orientação, diretrizes e expedientes úteis à prática judicial e extrajudicial.

Decorrido um ano da Lei do Superendividamento, é imperativo que o Poder Judiciário mantenha sua fundamental atuação de conferir amplo acesso à justiça, em atenção ao princípio da dignidade da pessoa e da necessidade de preservação do mínimo existencial, propiciando a disponibilização dos meios autocompositivos de solução de litígios.

Apresenta-se como medida de suma importância a uniformização de ritos e procedimentos, sobretudo por meio de termos de cooperação e convênios, sendo imprescindível a união de esforços entre o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor e demais instituições implicadas, a fim de otimizar a operacionalidade e efetividade aos ditames da Lei nº 14.181/2021.

Nesse contexto, destaca-se a necessidade de os fornecedores de crédito revisarem suas políticas internas de oferta de produtos e serviços, os contratos firmados e a boa-fé das relações, a publicidade e as informações claras e adequadas, bem como a forma de atendimento aos consumidores, a fim de mitigar os riscos de desrespeito às questões relativas à oferta de crédito e aplicação das sanções legalmente previstas.

 

Material elaborado por André Muszkat e Andréa Canella