16 de fevereiro de 2023 •
A liminar do caso Americanas e a segurança jurídica do direito da insolvência
Fonte: JOTA
O caso da Americanas tem estampado diariamente os noticiários desde a publicação do fato relevante de 11 de janeiro de 2023, que trouxe à tona supostas “inconsistências contábeis”, relativas a operações de risco sacado, que teriam inflado o resultado da companhia, ocultando um rombo da ordem de R$ 20 bilhões.
Dentre as inúmeras discussões então inauguradas e levadas à justiça, tem-se a controvérsia acerca da liminar obtida pela Americanas, em sede de tutela cautelar em caráter antecedente.
Em resumo, a liminar (i) sobrestou os efeitos de cláusulas contratuais de vencimento antecipado acionadas em decorrência do fato relevante e seus desdobramentos; (ii) suspendeu a exigibilidade de obrigações financeiras; (iii) suspendeu o direito de compensação contratual e de liquidação de operações envolvendo derivativos; (iv) condicionou a realização de qualquer arresto, penhora, sequestro, busca e apreensão e constrição sobre os bens da empresa à prévia análise do Juízo da cautelar; (v) determinou a manutenção de linhas de crédito e contratos de fornecimento necessários à operação da companhia; (vi) determinou a imediata restituição de valores retidos, compensados ou apropriados por credores em decorrência do fato
relevante e seus desdobramentos; e (vii) concedeu o prazo de 30 (trinta) dias para o ajuizamento de recuperação judicial pela Americanas; dentre outras medidas.
Não se pretende com este artigo discutir o acerto ou não da decisão, o que é objeto de disputa judicial entre a companhia e diversos credores, competindo apenas a nossos tribunais tal definição, à luz das leis e princípios do sistema falimentar, bem como das circunstâncias do caso concreto. O objetivo do artigo é apenas provocar a reflexão sobre os impactos da liminar sob a perspectiva da segurança jurídica, a partir da análise de seus fundamentos legais e suas determinações.
Para tanto, é preciso destacar que a liminar foi expressamente concedida com fundamento no §12 do art. 6º da Lei nº 11.101/2005 (LFRE). Tal dispositivo legal trata da antecipação (total ou parcial) dos efeitos do deferimento do processamento da recuperação judicial.
Conforme o caput do art. 6º da LFRE, os efeitos do deferimento do processamento da recuperação judicial compreendem (i) a suspensão da prescrição de obrigações do devedor sujeitas ao procedimento; (ii) a suspensão de ações e execuções contra o
devedor envolvendo dívidas sujeitas à recuperação judicial; e (iii) a proibição de constrições sobre o seu patrimônio.
A rigor, a antecipação dos efeitos do processamento assegura o resultado útil da recuperação judicial e impede a deterioração do patrimônio do devedor, sem prejuízo da realização de diligências necessárias para a oportuna apreciação pelo Juízo dos
requisitos legais para o efetivo deferimento do processamento da recuperação judicial. O mecanismo é legítimo e extremamente útil, além de ser amplamente aceito por nossos tribunais, desde antes de sua incorporação ao ordenamento jurídico, promovida pela Lei 14.112/2020.
A medida foi originalmente concebida como tutela incidental ao pedido de recuperação judicial já ajuizado pelo devedor, para os casos em que o efetivo deferimento do processamento dependesse da prévia realização de alguma providência determinada pelo Juízo (e.g. emenda da inicial, apresentação de documentos essenciais pendentes, realização de constatação prévia, etc.).
Não obstante, com a introdução do §12 ao art. 6º da LFRE, o qual faz referência expressa ao art. 300 do Código de Processo Civil (CPC), tem-se tornado recorrente a utilização de tutela cautelar em caráter antecedente à recuperação judicial, visando à antecipação dos efeitos do deferimento do processamento da recuperação. Essa foi, aliás, a opção processual adotada pela Americanas.
Ocorre que a liminar do caso Americanas não antecipou nenhum efeito do processamento da recuperação. De fato, a liminar não suspendeu a prescrição das obrigações, nem as ações e execuções contra o devedor, e não proibiu constrições sobre o seu patrimônio, tendo apenas condicionado novas constrições à prévia análise pelo Juízo da cautelar. A liminar também não antecipou os efeitos de outras decisões inerentes a ou esperadas no curso do procedimento de recuperação, salvo em relação a algumas poucas ordens, como a proibição de inscrição de dívidas em cadastros negativos e a suspensão da exigibilidade de obrigações sujeitas à recuperação.
Ao contrário, a liminar concedeu uma série de pedidos alheios ao escopo da recuperação, mas supostamente necessários para viabilizar seu resultado útil, que restringiram direitos de credores específicos, apontados pelo próprio devedor.
Algumas determinações da liminar possuem, inclusive, caráter condenatório, como o caráter condenatório da ordem de restituição de valores retidos, compensados ou apropriados por credores em decorrência do fato relevante e seus desdobramentos, o que sequer parece compatível com o procedimento de jurisdição voluntária da recuperação, o qual é voltado à superação da crise econômico-financeira da empresa, por meio de solução negociada com seus credores.
Ainda, a liminar parece ter concedido efeitos retroativos a algumas de suas determinações, alcançando atos jurídicos perfeitos e acabados, performados antes mesmo do ajuizamento da cautelar, como a ordem para restituição de recursos retidos, compensados ou apropriados pelos credores em decorrência do fato relevante e seus desdobramentos.
Sem prejuízo, a liminar concedeu os pedidos formulados pelo devedor sem que certos documentos essenciais ao deferimento do processamento da recuperação tivessem sido apresentados, em especial a relação de credores, documento que evidencia o
passivo total da empresa e as partes diretamente afetadas pela recuperação, o que, se não inédito, é extremamente incomum.
Por essas e outras razões é que a liminar tem causado certa estranheza e inconformismo no mercado, ensejando batalhas judiciais acirradíssimas entre a companhia e os principais credores. A questão não é simples, como demonstram as
diversas reviravoltas do caso. Há muitos aspectos a serem ponderados, como a preservação da empresa e a manutenção da fonte produtora e geradora de empregos.
Não há dúvidas de que a questão é relevante e deve ser endereçada com prioridade, para que se possa definir o rumo da Americanas com a celeridade que o caso requer.
Não obstante, é preciso ter cautela no processamento e julgamento de casos de tamanha magnitude e repercussão, pois suas decisões tendem a se tornar emblemáticas, sendo elevadas a precedentes inevitáveis para outros casos que estão por vir (o Grupo Oi já se beneficiou do precedente), bem como para o processo decisório de investimentos futuros.
O que o mercado espera, como sempre, para além de agilidade que os tribunais têm demonstrado com primor, é que não se olvidem no caso Americanas da necessária segurança jurídica do sistema falimentar e da previsibilidade esperada das decisões.
* Joana Bontempo é advogada, consultora de Reestruturação de Empresas e Falências
no CSMV Advogados.