11 de setembro de 2023 •
Mediação e tutela cautelar antecedente
Fonte: Jota
Insegurança jurídica na perspectiva de agentes fiduciários e debenturistas.
Por: Joana Bontempo e Juliana Fukusima Sato
A emissão de dívidas no mercado de capitais é uma das principais formas de captação de recursos de médio e longo prazo por empresas brasileiras, sendo inegável sua importância para o desenvolvimento econômico do país. Não obstante, de acordo com a Anbima, as emissões em abril/2023 atingiram o nível mais baixo dos últimos três anos. O cenário decorre de fatores como estagnação econômica, vencimento das dívidas renegociadas na pandemia, inflação e juros altos.
Nesse contexto, certas empresas emissoras de dívidas no mercado de capitais têm buscado a Justiça para, dentre outros, impedir o vencimento das dívidas, suspender as execuções e/ou negociar com seus credores. As medidas têm sido concedidas por meio de mediação e/ou tutela cautelar antecedentes, com base nas Leis 11.101/2005 (LFRE) e 13.105/2015 (CPC).
A par da discussão acerca do cabimento e alcance da mediação e tutela cautelar antecedentes, bem como das ilegalidades verificadas em certos casos, o fato é que o ajuizamento de tais medidas pelas empresas e sua análise pelo Judiciário merecem especial atenção quando os pedidos envolverem títulos de dívidas emitidas no mercado de capitais.
Com o intuito de contribuir para o debate do tema, sem pretensão de esgotá-lo, o artigo expõe a insegurança jurídica e o risco sistêmico para o mercado de capitais, sob a perspectiva dos agentes fiduciários/trustees e dos debenturistas/bondholders. Para tanto, é preciso compreender o funcionamento e as regras do mercado de capitais, no que se refere à emissão de títulos de dívida, além das medidas antecedentes adotadas pelas empresas.
Os credores de títulos de dívida emitidos no mercado de capitais formam uma comunhão representada por um terceiro. Guardadas as diferenças entre as estruturas de dívida e figuras jurídicas envolvidas em cada ordenamento jurídico, a dívida é adquirida por diversos investidores, que são conjuntamente representados por um agente, cujos deveres e obrigações decorrem de leis e instrumentos de emissão da dívida.
Ao contrário dos demais credores que se autotutelam, a tutela dos interesses e direitos dos credores de títulos de dívida emitida no mercado de capitais depende de processo de deliberação em Assembleia Geral. Isso porque o mandato do agente fiduciário/trustee é restrito à execução das ordens dos investidores, conforme deliberado no conclave. Assim, o agente fiduciário/trustee convocará a Assembleia quando evidente e notório o descumprimento do título, para deliberação da comunhão quanto aos atos a serem adotados. De outro lado, se o título ainda não estiver vencido ou não houver uma provocação prévia da devedora, os credores da dívida emitida no mercado de capitais dificilmente terão como se preparar para eventuais medidas antecedentes à recuperação.
Mais do que isso, mesmo após o ajuizamento da mediação ou tutela cautelar antecedentes, é improvável que o agente fiduciário/trustee tenha condições de adotar todos os procedimentos exigidos para a representação da comunhão a tempo e modo. Diferentemente da recuperação judicial, em que os credores se pronunciam sobre a proposta de reestruturação da dívida em fase mais avançada do processo, no caso da mediação e da tutela cautelar antecedentes, exige-se seu imediato engajamento.
A experiência demonstra que, em emissões públicas e pulverizadas no mercado de capitais brasileiro, o alinhamento de interesses da comunhão é complexo. Trata-se, em regra, de grupo pouco coeso de investidores que podem ser substituídos a todo momento, dado que os títulos continuam circulando em mercado secundário.
Nesse cenário, mesmo que o agente fiduciário/trustee consiga implementar todos os procedimentos exigidos pelo mercado de capitais para instalação da Assembleia, é improvável que tenha sucesso na obtenção de instruções dos credores. Desse modo, atuará em “regime de melhores esforços” aplicável ao “homem probo”, a fim de adotar, a tempo e modo, as providências para a preservação dos direitos da comunhão dos credores.
Ainda que se admita a participação individual dos debenturistas/bondholders nas medidas antecedentes, sem prejuízo da atuação dos agentes fiduciários/trustees, em analogia ao entendimento aplicável à recuperação judicial[1], a verdade é que a diferença entre os procedimentos não assegura o mesmo resultado. Isso porque a restruturação do título emitido no mercado de capitais deve ser realizada de forma unitária, não sendo facultado a certos credores aderir à restruturação e a outros permanecer com o título original. Ora, enquanto na recuperação judicial toda a dívida é restruturada conforme o voto da maioria acerca do plano, na mediação antecedente, apenas os credores aderentes ficam vinculados à proposta do devedor.
Nesse contexto, a participação de debenturistas/bondholders na mediação antecedente tende a ser ineficaz, salvo se representarem a maioria dos títulos em circulação, hipótese em que os procedimentos previstos no instrumento de emissão ainda assim deverão ser observados, com oportuna convocação de Assembleia para ratificação da proposta aceita na mediação. Já a atuação do agente fiduciário/trustee tende a ser de mero ouvinte, pois não tem poderes decisórios e ainda não terá instruções dos credores.
As peculiaridades acima demonstradas podem levar à atuação extraordinária do agente fiduciário/trustee, ad referendum da assembleia. Tal atuação enseja riscos, sobretudo de não ratificação dos atos praticados, responsabilização por prejuízos causados e posterior declaração de nulidade de atos. Mesmo que haja carta conforto (hold harmless) dos investidores, o risco de eventual nulidade dos atos praticados permanece. A situação é prejudicial não apenas para os investidores e agentes fiduciários/trustees, mas para a companhia emissora e todo o mercado de capitais, que segue atento à jurisprudência.
Dessa forma, é necessário que o Poder Judiciário compreenda o funcionamento do mercado de capitais e as peculiaridades dos créditos dele decorrentes, a fim de assegurar a compatibilização das mediações e tutelas cautelares antecedentes com as regras desse mercado.
Nesse contexto, propõe-se que a tutela cautelar antecedente que envolva dívidas emitidas no mercado de capitais somente seja deferida se a companhia emissora demonstrar, além dos demais requisitos legais, que está em negociação com os investidores, com proposta inicial de restruturação já submetida aos credores, idealmente no âmbito de mediação já instaurada. Assim, ao menos em tese, a emissora cumpriria o dever oportunizar a participação efetiva dos debenturistas/bondholders e dos agentes fiduciários/trustees nas medidas antecedentes à recuperação, promovendo o desenvolvimento de um ambiente seguro para a negociação e eventual celebração de acordo com a companhia emissora.
Do contrário, os direitos e interesses dos titulares de dívidas emitidas no mercado de capitais continuarão comprometidos, o que poderá perpetuar a instabilidade atual no mercado de capitais e ensejar insegurança jurídica insuportável, além de potencial risco sistêmico, com redução ainda mais acentuada nas emissões de dívidas e maior dificuldade para a superação da crise vivenciada pelas empresas brasileiras.
Nesse contexto, compete à companhia emissora, ao se socorrer ao Judiciário, buscar a compatibilização das medidas antecedentes à recuperação com as regras do mercado de capitais, de forma a permitir a participação efetiva dos agentes fiduciários/trustees e debenturistas/bondholders, tendo o Judiciário papel fundamental para assegurar que tal objetivo seja alcançado, com o fim maior de manter o equilíbrio do mercado.
[1] A jurisprudência consolidou a possibilidade de participação de debenturistas/bondholders e agentes fiduciários/trustees na recuperação judicial (CELPA: 0005939-47.2012.8.14.0301, TJPA; OSX: 0044890-34.2014.8.19.0000, TJRJ; Rede: 2060533-37.2013.8.26.0000, TJSP; Parmalat: 0117751-38.2005.8.26.0000 e 0117751-38.2005.8.26.0000, TJSP; Independência: 903776-66.2009.8.26.0000, TJSP). No mesmo sentido, tem-se o Enunciado 76 da II Jornada de Direito Comercial de 27.2.2015 e o artigo 68, § 3º, “d” da Lei da S.A.