22 de agosto de 2023 •
Orientações da CVM para Acesso ao Mercado de Capitais por SAFs
A Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”) emitiu o Parecer de Orientação nº 41, em 21 de agosto de 2023, manifestando-se sobre correlações entre Sociedades Anônimas do Futebol (“SAF”) no mercado de capitais.
Introduzidas pela Lei nº 14.193/2021, as SAF são sociedades que têm por atividade principal a prática do futebol profissional, masculino e feminino e que, em vista de sua estrutura societária e de governança, são consideradas sociedades por ações, sujeitas supletivamente à Lei nº 6.404/1976 (“Lei das Sociedades por Ações”). Tal regência supletiva, entretanto, não implica necessariamente na competência da CVM sobre todos os aspectos relacionados às SAFs. Assim como é o caso de sociedades anônimas de capital fechado, apenas as SAF que buscam registro como companhias abertas ou acessam o mercado de capitais para financiar suas atividades estão sujeitas à regulamentação e fiscalização da CVM, conforme definido na legislação aplicável.
Dessa forma, o Parecer nº 41 da CVM delineia a interseção entre a Lei da SAF e a regulação do mercado de valores mobiliários, oferecendo orientações sobre as alternativas para financiamento das atividades esportivas desenvolvidas pelas SAFs e como estas se enquadram no escopo de competência da CVM. Dentre os principais temas tratados, destacam-se os seguintes:
- Constituição e Capital Social
O Parecer inicia tratando das três hipóteses de constituição de SAFs previstas da Lei da SAF, a saber: (i) por meio da transformação do tipo societário de clubes, (ii) por cisão de departamentos de futebol de clubes (aqui entenda-se via integralização com bens e direitos que compõem o departamento de futebol do clube), ou (iii) por iniciativas individuais ou de fundos de investimento, constituindo uma SAF sem partir de ativos, direitos ou pessoa jurídica preexistente.
A CVM esclarece que o capital social da SAF deve seguir as diretrizes da Lei das Sociedades por Ações, incluindo a possibilidade de contribuições em dinheiro ou ativos passiveis de avaliação. Nos moldes aplicáveis a sociedades por ações em geral, a avaliação de bens tangíveis e intangíveis, como marcas, direitos desportivos de atletas e estádios, deve ser conduzida por peritos ou empresas especializadas. Recomenda-se, portanto, que assessores de SAF atentem para as normas contábeis e contratem auditores registrados na CVM para garantir a precisão da avaliação de ativos e passivos transferidos, nas hipóteses de constituição via cisão de departamento de futebol.
O Parecer esclarece que, em que pese a Lei da SAF exigir a emissão de Ações Classe A ao clube ou pessoa jurídica que der origem à SAF, tais ações não são negociáveis em bolsas ou mercados regulamentados, sendo privativas do clube ou pessoa jurídica original. A venda de tais Ações Classe A exige sua conversão em ações preferenciais ou ordinárias de outra classe, que não conservam os direitos originais atribuídos a Ações Classe A pela Lei da SAF.
Por outro lado, eventuais ações ordinárias de outra classe ou ainda ações preferenciais emitidas por SAF poderão ser negociadas em bolsas ou mercados regulamentados, observadas as disposições aplicáveis às demais sociedades por ações (por exemplo, as ações preferenciais sem direito a voto não podem ultrapassar 50% do total de ações emitidas pela SAF). Além disso, o Parecer esclarece que não há restrições quanto à possibilidade de aquisição de ações ordinárias de outras classes ou de ações preferenciais pelo próprio clube ou pessoa jurídica original.
- Governança
O Parecer ressalta também que as regras de controle e governança corporativa previstas na Lei da SAF não conflitam com aquelas estabelecidas nas demais leis aplicáveis, devendo ser entendidas como complementares às diretrizes previstas na Lei das Sociedades por Ações.
A Lei da SAF estabelece regras de governança aplicáveis especificamente a SAF, como, por exemplo, a restrição à acumulação de cargos por acionistas controladores, proibição de participar da administração de mais de uma SAF, e restrições ao direito de voz e voto em assembleias gerais para acionistas que detenham mais de 10% de ações da SAF e, ao mesmo tempo, detenham qualquer número de ações de outra SAF. Nesse sentido, a CVM orienta que as SAFs implementem medidas e controles aptos a verificar e garantir a observância de tais regras.
O Parecer esclarece ainda que, em razão da aplicação supletiva da Lei das Sociedades por Ações e, portanto, de seu artigo 111, §§ 1º e 2º, titulares de ações preferenciais sem direito a voto podem adquirir tal direito na hipótese de não pagamento de dividendos fixos ou mínimos. Nesse caso, entretanto, o direito de voto adquirido pelos preferencialistas não poderá afetar adversamente os direitos do clube ou pessoa jurídica original decorrentes das ações Classe A por eles detidas, tais como a a necessidade de voto afirmativo de titulares de ações Classe A para aprovação de determinadas matérias previstas no artigo 2º, §§ 3º e 4º da Lei da SAF, como a cessão de direitos de propriedade intelectual da SAF que tenham sido conferidos pelo clube ou pessoa jurídica original, alteração da denominação da SAF, mudança dos signos identificativos da equipe de futebol profissional da SAF, entre outras.
- Acesso ao Mercado de Capitais e negociação de valores mobiliários
O Parecer enfatiza a relevância do mercado de capitais como uma alternativa para a captação de recursos pelas SAFs. Assim como outras companhias, as SAFs podem utilizar o mercado de capitais para reestruturar dívidas e financiar projetos, por meio de uma oferta pública inicial de ações ou negociação de outros valores mobiliários previstos em lei. Ressalta-se que, para tanto, as SAF devem aderir ao conjunto normativo aplicável às demais companhias abertas, incluindo as resoluções CVM 80 e 160, que regulamentam registros de emissores e ofertas públicas de distribuição primária ou secundária de valores mobiliários.
Além disso, a Lei da SAF permite a emissão de debêntures-fut, um instrumento específico para financiamento das SAFs, com os recursos sendo destinados a atividades típicas do futebol. A Resolução CVM 160 permite que sociedades não registradas realizem ofertas públicas de títulos de dívida, tais como as debêntures-fut, destinadas a investidores profissionais, bem como eventuais restrições quanto à negociação de tais valores mobiliários nos mercados regulamentados. Quando a SAF optar por ofertar debêntures-fut publicamente ou admiti-los a negociação em mercados regulados, as demais normas emitidas pela CVM em relação a debêntures em geral deverão ser observadas.
Adicionalmente, o Parecer esclarece que as SAFs podem emitir outros tipos de valores mobiliários previstos para sociedades anônimas, incluindo debêntures que não sejam debêntures-fut, contanto que estejam em conformidade com os requisitos legais e regulatórios aplicáveis. Caso uma SAF opte por emitir debêntures regidas exclusivamente pela Lei das Sociedades por Ações, as disposições específicas previstas na Lei da SAF em relação às debêntures-fut não serão aplicáveis.
- Outras formas de captação de recursos
Vale destacar algumas alternativas de captação de recursos que, no entendimento da CVM, podem ser utilizadas pelas SAFs ou por interessados em investir em SAFs, desde que observadas as disposições legais aplicáveis e eventuais normas específicas editadas pela CVM, entre elas:
- Crowdfunding de investimento: forma de captação de investimento participativo regulado pela Resolução CVM nº 88, de 27 de abril de 2022, pelo qual as SAFs podem captar recursos por meio de oferta pública de valores mobiliários através de plataforma eletrônica específica, com responsabilidades e custos reduzidos. Trata-se de meio de captação destinado a sociedades empresárias de pequeno porte, permitindo a captação de até R$ 15 milhões por ano, com limite de investimento de R$ 20 mil por investidor não qualificado;
- Emissão de valores mobiliários tokenizados: forma de captação de recursos por meio da emissão de valores mobiliários tokenizados (“tokens”) em redes de registro distribuído (“distributed ledger technology”), observadas as mesmas condições e limites previstos na Resolução CVM nº 88, de 27 de abril de 2022;
- Fundos de Investimento: veículos de investimento coletivo regulamentados pela CVM, que permitem a aplicação conjunta de recursos em ativos financeiros. Dentre os diferentes tipos de fundos que podem ser utilizados como veículos de investimento nas SAFs, ou por SAFs em seus investimentos, estão os Fundos de Investimento em Participações (FIP), Fundos de Investimento Imobiliários (FII) e Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDC); e
- Securitização de créditos: operações por meio das quais as SAFs podem antecipar o recebimento de direitos creditórios de sua titularidade por meio de sua cessão para FIDC ou companhias securitizadoras, mediante aplicação de um desconto sobre o valor integral. Valores que podem ser antecipados incluem, por exemplo, recebíveis decorrentes de verbas de publicidade, receitas de direitos de transmissão, premiações ou outras participações em resultados em determinada liga, aluguel de imóveis, naming rights, receita futura de bilheteria ou, ainda, valores decorrentes de negociações de jogadores, observadas as eventuais restrições de direito desportivo aplicáveis à negociação de tais direitos/recebíveis.
- Divulgação de Informações
Por fim, o Parecer ressalta a importância de SAFs divulgarem informações claras e completas, a fim de orientar investidores (que muitas vezes se confundem com torcedores) a tomarem decisões de investimento informadas e conscientes. Dessa forma, recomenda-se especial atenção à descrição de fatores de risco, usando linguagem equilibrada que considere tanto aspectos positivos quanto negativos das oportunidades de investimento apresentadas pela SAF. Embora seja compreensível o desejo de torcedores contribuírem para o sucesso de seu time, a CVM destaca que os profissionais envolvidos na comunicação de distribuições de valores mobiliários por SAFs não devem explorar esse aspecto emocional para promover a oferta, enfatizando a necessidade de linguagem serena e moderada.
Além disso, as SAFs devem observar normas de comunicação e transparência não apenas durante ofertas públicas, mas também em suas divulgações regulares. A CVM ressalta que as obrigações específicas da Lei da SAF não anulam os requisitos gerais da regulação da CVM ou da Lei das Sociedades por Ações. A Autarquia reconhece a complexidade da definição de informações relevantes para SAF e indica que a manifestação pública em resposta a notícias pode não ser obrigatória, mas a avaliação de atos e fatos que possam ter impacto deve ser feita com cuidado.
- Conclusão
O Parecer nº 41 emitido pela CVM traz importantes esclarecimentos sobre a aplicação, às SAFs, de disposições legais e resoluções voltadas a companhias abertas e a captadores de recursos via valores mobiliários em geral , fornecendo maior segurança jurídica a clubes que pretendam buscar investimento ou financiamento no mercado de capitais.
Importante notar que o Parecer confirma as orientações que o CSMV Advogados vem compartilhando com seus clientes, tanto no que se refere a questões de governança, composição de capital social e aos exemplos de aplicação subsidiária da Lei das Sociedades por Ações às SAFs, como no entendimento de que, assim como ocorre em relação a sociedades anônimas em geral, a supervisão de suas atividades pela CVM somente ocorrerá quando estas optarem por acessar o mercado de capitais ou outras formas de captação de recursos reguladas pela Autarquia.