06 de novembro de 2023 •
Repositórios públicos e privados de reclamações de consumidores
Ausência de meio probatório hábil a comprovar a existência de danos coletivos aos consumidores
Fonte: Conjur
Por: André Muszkat
Tendo em vista a evolução das relações de consumo, sua massificação por todos os
meios de comunicação e formas de relacionamento, tem-se como essencial a defesa
coletiva de consumidores, por meio dos órgãos competentes.
Neste cenário, destaca-se a Lei n.º 7347/85 – “Lei da Ação Civil Pública – LACP”, que
“Disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio-
ambiente, ao consumidor (…)” entre outros.
O artigo 5° da LACP 1 estabelece o rol de legitimados extraordinários na defesa dos
interesses e direitos coletivos lato sensu por meio da propositura de Ação Civil Pública.
No mesmo sentido, cite-se o artigo 82 do Código de Defesa do Consumidor (“CDC”) 2 , a
respeito da legitimidade ativa concorrente para a defesa dos interesses e direitos
coletivos em Juízo.
Tratando-se de ação a fim de se responsabilização por eventuais danos causados –
neste caso, aos consumidores – a produção de provas a respeito dos fatos, danos
alegados e nexo de causalidade é essencial. Com efeito, para existir o dever de reparar
(indenizar), é necessário que haja: (i) conduta ilícita; (ii) dano; e (iii) nexo causal entre a
conduta lesiva e o prejuízo sofrido, nos termos dos arts. 186 3 e 927 4 do Código Civil.
Por meio da Ação Civil Pública em casos de relações de consumo, fica à disposição dos
legitimados todos os meios de prova existentes permitidos em direito, a fim de
comprovar necessário nexo de causalidade acima destacado.
Neste ponto, merece especial destaque o papel do Ministério Público, que inclusive
tem a prerrogativa de “instaurar, sob sua presidência, inquérito civil, ou requisitar, de
qualquer organismo público ou particular, certidões, informações, exames ou perícias”
(art. 8°, § 1° da LACP 5 ) antes da propositura de Ação Civil Pública, sendo que, inclusive,
“se não intervier no processo como parte, atuará obrigatoriamente como fiscal da lei”
(art. 5°, § 1° da LACP 6 ).
Entretanto, apesar de dispor de todas as ferramentas acima mencionadas, tem sido
cada vez mais comum a instrumentalização de Ações Civis Públicas e outros processos
coletivos, com base principalmente em listagens genéricas oferecidas por órgãos do
sistema nacional do consumidor e, especialmente, por sites e plataformas privadas,
especializadas em serviços de conciliação ou atendimento do consumidor pelo
fornecedor.
De fato, verifica-se com frequência os pedidos de expedição de ofício a fim de que
essas plataformas enviem as informações que possuem sobre determinados assuntos
e empresas.
Reconhece-se a importância de tais plataformas para o dia a dia das relações de
consumo. Todavia, não podem ser o único ou o principal fundamento para
comprovação de alegados danos coletivos aos consumidores.
Com efeito, em tais plataformas, apesar de ser possível a verificação da existência de
reclamações, essas são feitas de forma unilateral, sem a existência do contraditório,
tratando-se muitas vezes de assuntos diversos e não constando a informação a
respeito do eventual desfecho do caso em discussão. Não há a comprovação efetiva de
um dano coletivo que transcenda a individualidade de quem apresentou eventual
reclamação.
Por meio do REsp n.º 1.946.020, de Relatoria da Ministra Nancy Andrighi, o Superior
Tribunal de Justiça já se manifestou no sentido de ausência de força probatória dessas
plataformas:
(…)
As reclamações constantes no sítio eletrônico “Reclame Aqui”, igualmente, não são
capazes de demonstrar expressividade e relevância social da alegada violação do
bem jurídico a justificar a tutela de ordem coletiva, mormente porque em sua
maioria tratam de defeitos diversos, não relacionados especificamente ao serviço de
atendimento ao cliente.
(…)
Os elementos constantes dos autos não demonstram a existência de
representatividade e de relevância social, portanto, impõe-se a improcedência dos
pedidos contidos na ação, aplicando-se na hipótese os princípios da primazia do
mérito e da teoria da asserção. (Decisão monocrática, REsp nº 1.946.020, Relatora
Ministra Nancy Andrighi, Dje. 16.8.2021 – sem ênfase no original).
Em recente decisão, o E. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul seguiu a mesma
orientação. No caso em questão, verificou-se que as informações prestadas pela
plataforma de comunicação entre consumidores e fornecedores não eram suficientes
para comprovação de danos aos consumidores. Confira-se:
“(…)
PRÁTICAS ABUSIVAS. NÃO COMPROVADAS. ÔNUS PROBATÓRIO NÃO ATENDIDO PELO
MP.
(…)
3. Os ofícios respondidos pela SENACON e pelo PROCON do estado de Porto Alegre /
RS, indicam inexistir reclamações análogas registradas em seus bancos de dados,
reformando a precariedade da prova extraída de uma página da internet.
4. Embora aludido site exerce um fundamental papel na solução de impasses entre
fornecedores e consumidores, não é prova capaz de, por si só, dar ensejo a uma ação
civil pública.(…).
(…)
Ainda que o número de reclamações seja massivo, a ação civil pública não é norteada,
apenas, pelo critério quantitativo. Isso porque, também deve ficar comprovada a
efetiva repercussão qualitativa dos direitos em discussão.
As meras reclamações do site Reclame Aqui, não são, por si só, prova suficiente para
a procedência desta ação. Primeiro, porque manifestamente unilaterais e, segundo,
porque não veio aos autos o desfecho de cada uma das reclamações.
Ou seja, não se tem conhecimento se foram consideradas pertinentes, tampouco, se
foram solucionadas ou não. (…)” (16ª Câmara Cível, Apelação Cível n.º 5124299-
67.2021.8.21.0001/RS, Relatora Desembargadora Jucelana Lurdes Pereira dos Santos,
j. 28.9.2023 – sem ênfase no original).
Assim, verifica-se que a jurisprudência pátria está caminhando no sentido justamente
de delimitar a utilização de repositórios de reclamações de consumidores como prova
de alegado dano coletivo, cabendo ao legitimado que propõe a ação coletiva
efetivamente demonstrar que aquela determinada prática reputada abusiva
transcende a individualidade e tem o condão de ensejar a reparação prevista no
ordenamento jurídico.
André Muszkat é sócio do escritório CSMV Advogados, especializado em Contencioso
Cível, Consumidor e Recuperação de Créditos. Formado pela PUC-SP, Mestre em
Direito Processual Civil e especialista em Direito do Consumidor pela PUC-SP.
Especialista em Contratos Empresariais pela FGV. Integrante do Comitê de Relações de
Consumo do Instituto Brasileiro de Estudos de Concorrência, Consumo e Comércio
Internacional (IBRAC).