O noticiário tem comparado a conhecida falha da Lei Kandir de 1996 com a questão da tributação de combustíveis, atualmente em debate no Congresso por impulso e sugestão do Governo Federal, dado que em ambas há perda de arrecadação dos Estados com promessa de ressarcimento pela União. As críticas se ocupam muito com viés político, sem aprofundar tanto na questão técnica, e nisso vale indicar o quanto exatamente temos de similaridade com a Lei Kandir.
O governo federal está claramente preocupado com a inflação mundial e local, isso é válido independentemente do que leve à esta preocupação. Dito isso, a Lei Kandir sempre gerou insatisfação, pois sua sistemática implicou no acúmulo de créditos a serem ressarcidos por estados sede de contribuintes exportadores. Na cadeia comercial o ICMS agregado resulta em crédito a ser ressarcido pelo último estado em que circula a mercadoria em uma cadeia comercial. Como a União jamais cuidou de solucionar este problema os créditos são ressarcidos, quando ressarcidos, a duras penas. É um sistema ineficiente, em que a exoneração na exportação, prevista na Constituição, não ocorre como deveria, encarecendo os produtos para fins de competição internacional, e dificultando o ambiente de negócio no Brasil.
Neste momento se discute a redução de ICMS de combustíveis, a zero para diesel e gás, e com teto de 17% para gasolina e etanol. Sendo o ICMS de competência estadual evidentemente que há perda de arrecadação dos Estados, e para que esta redução passe no congresso, negocia-se a recomposição destas receitas que serão perdidas. O receio é que tal como a Lei Kandir, o ressarcimento não ocorra na prática. Ainda não há um texto definido com a previsão de como seria a recomposição destas perdas por Estado. O que o Ministério da Fazenda está sugerindo seria a previsão em valores pré-definidos e por prazo determinado. Isso implica dizer que na transição haveria uma ajuda da União, que não seria definitiva. Também não seria integral, pois fala-se em não ressarcir no caso da redução, por exemplo, no caso do etanol e gasolina.
Mais do que uma perda para os Estados, a proposta interfere na competência destes de tributar o ICMS sobre combustíveis, que é uma das mais importantes fontes de arrecadação. O Projeto de Lei Complementar em andamento, por ora, prevê a qualificação de energia, gás natural, comunicações e transportes coletivos como bens essenciais e indispensáveis. Isso implicaria naturalmente na aplicação de alíquotas de 17% a 18%. Fala-se em uma proposta de emenda constitucional para prever as perdas de receita, e há a proposta de zerar o imposto no caso de diesel e gás de cozinha, lembrando que o governo federal já zerou os tributos federais de sua competência.
Há muito se discute no judiciário a essencialidade de determinadas mercadorias, que já tem previsão de limite de tributação pela Constituição. O que o projeto já em andamento faz é pacificar o que nos parece de fato ser algo essencial para o caso dos combustíveis. Em sendo assim, não há perda de arrecadação daquilo que for tributado dentro do teto (etanol e gasolina), na lógica de que ninguém perde algo que não é seu. Já para diesel e gás de cozinha, o incentivo federal para zerar alíquotas, ainda que momentaneamente, deveria mesmo ser acompanhado de mecanismo de compensação efetivo a não desequilibrar demasiadamente as contas públicas e o pacto federativo.
Do ponto de vista financeiro questiona-se o quanto a medida seria eficaz. Com efeito, o preço é um todo que contém tributo. A grosso modo o ICMS representa pouco mais de 20% do preço da gasolina ao consumidor e pouco mais de 10% para o diesel. Reduzir o primeiro em menos do que metade do ICMS, e o segundo reduzido a zero, ajudam claramente na possibilidade de redução de preços em até 10%. Ocorre que estes preços estão pressionados pelo valor na refinaria, e temos que prever alguma margem no distribuidor. Se em alguma destas duas pontas tiver aumento de custo, o perigo é que a redução do preço do ICMS seja absorvido e não chegue ao consumidor, ou chegue desidratado. De toda forma não parece ser transitória a previsão de teto pela essencialidade, isso corrige um erro histórico praticado pelos estados. A redução a zero sim é algo provisório buscando aliviar um item importante que influi na inflação.
*Flávio de Haro Sanches é sócio do escritório CSMV Advogados, especializado em Direito Tributário com ênfase em consultoria de indiretos, contencioso administrativo e judicial